Toda essa decepção com a floresta amazônica mudou no dia 1º de fevereiro de 2010, pouco depois de ter tomado aquelas decisões com o Gustavo sobre a caminhada ser de seis dias e a agência ser a Makunaima. Junto com dois servidores da Justiça Federal e um piloto do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, um órgão federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente que nos cedera a voadeira (canoa movida a motor de popa de bom desempenho), desci o rio Madeira como coordenador de um Juizado Especial Federal itinerante e fluvial.
Arrumando a "voadeira" para iniciar a navegação pelo Rio Madeira.
Teixeira, o nosso "piloteiro", já contava com décadas de navegação pelos rios da região.
Nossa voadeira em um dos inúmeros portos em que paramos no rio Madeira.
Estávamos na fase de divulgação de um programa que levaria juízes, membros do Ministério Público, do INSS, da Defensoria Pública da União e de outros órgãos para atender as populações do chamado Baixo Madeira. A intenção era atender os moradores das margens do Rio Madeira, pouco após Porto Velho e até a divisa com o estado do Amazonas, viajando sempre de barco. Para que isso acontecesse, era preciso que uma equipe fosse antes e fizesse a divulgação das datas em que o barco passaria pelas comunidades, para receber as ações judiciais dos moradores.
Fui sem pretensões. Mas, logo no começo, inteirei-me que aquela não seria uma viagem de trabalho comum, até pelo que estávamos para fazer: entrar em uma canoa pequena, para navegar no gigantesco Rio Madeira, que tem esse nome principalmente porque por ele descem todos os dias do ano inúmeros troncos gigantescos de árvores arrancadas das margens pela correnteza, junto com tudo quando é tipo vegetação, de todos os gostos e tamanhos.
Em alguns momentos, a chuva nos esperava em meio à navegação
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A vida dos ribeirinhos (na foto, produção de farinha artesanal) foi algo que me encantou por completo nessa viagem, além das belezas naturais que presenciei.
Paramos em vários distritos de Porto Velho à margem do rio Madeira, todos eles relativamente preparados para as cheias do rio, que são comuns anualmente.
Mais uma divulgação feita. O cartaz anunciava o trabalho da Justiça Federal dali a alguns meses.
Já tinha visto o rio à distância, do seco, bem como a partir das balsas que o cruzam e dos barcos maiores que fazem pequenos passeios turísticos perto da capital rondoniense. De repente, eu estava sentado em uma canoa a menos de um metro de suas águas barrentas, bastando esticar o braço para nelas tocar. Em menos de vinte minutos, eu já tinha visto a quantidade de balsas monumentais que levam de tudo rio acima e rio abaixo, de Porto Velho a Manaus e vice-versa, já tinha visto o movimento dos vários pontos de atracação dos barcos e balsas, bem como a vida pulsante às beiras do Madeira.
Porém, isso era apenas um aperitivo. Ao longo do dia, fomos descendo o rio e parando em várias comunidades pequenas, às vezes adentrando um pouco na mata, conhecendo frutos e aves da região e falando com inúmeros moradores, alguns dos quais nunca tinham saído dali. O Teixeira, nosso piloteiro, como é chamado o “motorista” da voadeira na Amazônia, foi me explicando muita coisa, inclusive sobre as árvores, até me mostrar aquela que sem eu saber habitava o meu imaginário infantil: a samaúma, também conhecida como a rainha da floresta. Podendo chegar até setenta metros de altura e três metros de diâmetro de tronco, cuja cor é meio esbranquiçada, a samaúma tem uma copa imponente que se destaca onde é muito difícil uma árvore chamar a atenção, diante de tantas concorrentes, ou seja, na Floresta Amazônica.
Aos pés de uma árvore bem grandinha (não era uma samaúma).
As samaúmas nas margens do Madeira me encantaram durante toda a viagem.
No dia seguinte, após dormirmos em uma comunidade ribeirinha, fomos até a Reserva Extrativista do Cuniã, no intuito de continuar o trabalho de divulgação que estávamos fazendo. Saímos do Madeira e entramos em um igarapé, que é como são chamados os pequenos rios na Amazônia (algo como os ribeirões de outras regiões brasileiras), chegando a locais onde a mata realmente nunca tinha sido tocada pelo ser humano.
Em determinado momento, o nosso piloteiro diminuiu a velocidade e mirou a voadeira em direção à floresta. Com o conhecimento de quem navegava naquela região havia décadas, ele encontrou o que os ribeirinhos chamam de furo, ou seja, um atalho que uma pequena embarcação pode pegar por dentro da mata na época das chuvas, quando a floresta é alagada, formando os chamados igapós. Por meio daquele furo, economizamos bons minutos de viagem e eu pude me sentir finalmente como em um daqueles documentários que a gente vê pela televisão desde criança, nos quais o repórter passa com a canoa por entre árvores gigantescas, navegando em um oceano de água cobrindo as bases da mata parcialmente submergida.
O "furo" no meio da floresta alagada.
Ir ao Cuniã foi um dos pontos altos de uma viagem memorável.
Claro, eu não poderia deixar de sair na foto, no meio do igapó!
Nem que eu quisesse conseguiria exprimir aqui o encanto que senti naquele momento, no qual eu adentrava em um mundo que pensava só existir na minha imaginação, um mundo fabricado pela TV naqueles programas de ficção. Incrível sentir a paz do lugar, mesmo a floresta sendo bem barulhenta. Sim, se tem algo que aprendi naqueles dias foi que a floresta pode ser ensurdecedoramente barulhenta, principalmente se as cigarras estão ativas! Às vezes, aparece um silêncio, mas de vez em quando o barulho da bicharada é tamanho que – perdoe-me o exagero – um seringueiro deveria utilizar tampão de ouvido como equipamento de segurança profissional, para não ficar surdo! Mas é um barulho bom, sem rompantes como os dos carros nas ruas das grandes metrópoles, um barulho que de vez em quando vai diminuindo lentamente, depois volta, é entrecortado pelo canto de uma ave lá na copa da samaúma, pelo ploc de algum fruto caindo na água, pelo som distante da respiração de um boto no meio do igarapé...
Este ribeirinho aproveitava para se banhar no Rio Madeira.
Um dos inúmeros e tradicionais barcos de passageiros que navegam não só pelo Rio Madeira, mas por toda a região amazônica, levando gente, cachorro, papagaio e muita mercadoria, entre outras coisas.
As crianças ribeirinhas vão para a escola de barco.
Linda canoa escavada em um tronco de árvore. Sem uma emenda sequer.
Em um cantinho às margens do rio Madeira, o singelo cemitério permanece em paz.
Ambulância também é de barco.
Vida simples e alegre da meninada ribeirinha.
Uma das inúmeras dragas que vi no rio Madeira, buscando ouro (provavelmente, de forma ilegal).
Mais uma das imensas balsas que levam caminhões, ônibus e muita carga pesada até Manaus e outras localidades, já que a rodovia que liga Porto Velho à capital do Amazonas, um dia asfaltada, voltou a ser praticamente engolida pela floresta.
Tudo bem, estou aqui para contar sobre a caminhada rumo ao Monte Roraima, mas como no meio de todo o seu preparativo apareceu essa viagem maravilhosa pela Amazônia, eu não poderia deixar de falar um pouquinho sobre ela. Naquele igarapé, depois de atravessar o furo, vi jacaré (com a indefectível borboleta pousada no focinho do bicho), macacos, pássaros dos mais bonitos e uma infinidade de coisas que meus olhos e minha câmera foram registrando avidamente.
O mesmo aconteceu depois de terminarmos o trabalho na Reserva do Cuniã, pois cada pedacinho daquela floresta intocada, cada detalhe das comunidades amazônicas ribeirinhas que nos receberam, a lida para fazer a farinha d’água que presenciamos, os frutos maravilhosos e desconhecidos para o paladar que recebemos, os constantes botos em fase de vadiagem (época de reprodução, no linguajar local), o peixe fresco do final do dia nos jantares regados a boa conversa sobre um mundo muito mais simples, tudo isso me cativou de uma forma que realmente selou meu amor pela Amazônia.
Depois de quatro dias, eu não era mais apenas um visitante ou morador de uma capital da região Norte, tão perto e tão longe da floresta. Muito menos era um turista que não chega a se aproximar da verdadeira mata, que não consegue enxergar a dimensão desse universo tropical. Eu era alguém que tinha realmente conhecido, embora rapidamente, a Floresta Amazônica, alguém que agora tinha a noção da infinita riqueza que ela representa para o nosso país e para o mundo. A Amazônia que meus olhos viram não era igual à da minha imaginação infantil, era muito melhor, mais rica, mais colorida, mais barulhenta e mais apaixonante.
Alexandre Henry
alexandre.henry.alves@gmail.com