quinta-feira, 17 de setembro de 2015

002 - A primeira ladeira

Na foto, o desafio parece ridículo. Puro engano. A subida era cruel.

Em algum momento de toda grande jornada, às vezes até antes mesmo de começar, você vai pensar em desistir. É sempre assim quando aparece um grande desafio à frente, como uma caminhada de seis dias em terreno extremamente acidentado, carregando uma mochila gigantesca nas costas. Acontece a mesma coisa quando você vai se casar, quando resolve estudar para um concurso dificílimo, quando decide abrir seu próprio negócio. Em algum momento de toda grande jornada, às vezes até antes mesmo de começar, você vai pensar em desistir. Acredite em mim, eu sei o que estou falando.
Exatamente no dia 13 de abril de 2010, às 12h45m, no horário brasileiro de Manaus, eu pensei em desistir. Não era a primeira vez em relação àquela aventura, eu confesso, mas talvez fosse a mais tentadora avaliação da possibilidade de deixar tudo para trás, uma vontade louca de correr de volta para a comunidade indígena de Paraitepui, onde havia sido deixado por uma Toyota Land Cruiser há cerca de duas horas, de pegar o primeiro veículo para Santa Elena de Uairén, depois para Boa Vista, já no Brasil e, então, um avião para o conforto de casa. Uma cama macia, um bom chuveiro de água quente, refeição a qualquer minuto, TV de 46 polegadas plugada no aparelho de Blu-Ray, meu mais novo brinquedinho, internet de alta velocidade para navegar a qualquer momento e, claro, bons dias sem trabalho pela frente. 

Qual a lógica deste mundo me faria trocar tudo isso de bom pela tarefa quase impossível de continuar aquela jornada, durante a qual meus pés certamente se arrebentariam, meus músculos se contorceriam de cãibras, eu dormiria numa barraca gelada sentindo o relevo do chão de terra e a comida seria sempre de qualidade duvidável? Por que trocar o conforto e a segurança da minha casa por um lugar inóspito, no qual não seria possível ser socorrido nem por helicóptero, se o tempo estivesse fechado, ficando sujeito a me esvair em dor até morrer, caso algum acidente acontecesse? Qual o sentido de maltratar meu corpo com uma mochila pesando uma tonelada, quando poderia exercitá-lo moderadamente em uma partida de tênis?

Dez dias antes, eu estava me deliciando em um hotel na Praia do Madeiro, no paradisíaco litoral potiguar. Cama maravilhosa, piscina com água quase morna e uma vista deslumbrante do mar. Como a vida da gente muda tão depressa?! Em um dia, você está no céu. No outro, sem que tenha cometido qualquer pecado relevante, está pagando o que fez e o que não fez no inferno. Sob o sol do litoral nordestino brasileiro, a água para matar a sede vinha em uma bandeja, trazida por um garçom sorridente que, em duas palavras, poderia trazer tudo de bom que eu quisesse. 

Agora, sob o sol venezuelano, a única água que eu via era a do suor que escorria incessantemente da minha testa, vindo diretamente da fonte de cabelos encharcados sob um chapéu esquisito em estilo militar que adornava minha cabeça. Para matar a sede, o trabalho seria imenso, pois o cantil estava dentro da velha e inadequada mochila de trilha, cujo trabalho de tirar e recolocar nas minhas costas me animava a continuar com sede. O garçom mais próximo, se é que havia algum garçom próximo, deveria estar a mais de uma hora de viagem. Mas, isso não era o pior.

Depois de caminhar por um quilômetro e meio em descida, mais uma distância parecida em uma subida relativamente leve, os primeiros passos daquele desafio, eu estava agora enfrentando a minha primeira e cruel subida íngreme rumo ao topo do Monte Roraima, embora a montanha ainda estivesse muito longe dali, mais precisamente a três dias de sofrimento. O GPS inconstante marcava que a saída da comunidade tinha se dado a uma altitude aproximada de 1.300 metros acima do nível do mar, seguida de mais de um milhar de passos até chegar a um córrego a cerca de 1.230 metros de altitude. Dali para frente, uma pequena subida até 1.265 metros e então a ladeira rumo a um cocuruto que certamente ultrapassaria os 1.360 metros.

É, na primeira subida é que a gente vê se a iniciativa vai dar em algum lugar ou se o melhor é pegar o rumo de casa.

Não sei em qual altitude eu estava quando me lembrei da minha cama macia, do sorriso da minha esposa, dos meus amados aparatos eletrônicos e de todas as maravilhas que configuravam a minha casa e a minha vida na cidade. Acho que não faltava tanto assim, mas meu batimento cardíaco acima de 180 cavalgadas por minuto me dava a impressão de que à frente ainda havia um Everest. O Lee, guia auxiliar dessa doideira, estava quase lá. Até aí, nada de mal, pois ele era guia e já estava acostumado com aquele ritual masoquista. 

O problema era o Gustavo, meu único companheiro de viagem, amigo dos tempos em que enfrentamos outro tipo de desafio no Tribunal Regional Federal lá do Nordeste. Ele também parecia estar chegando ao topo do morro, deixando-me vergonhosamente para trás, como eu tanto temia. Aliás, essa era outra razão para largar aquela ideia maluca e voltar para casa. Não bastasse o sofrimento físico, a tortura para cada um dos meus músculos e ossos, eu agora sabia que o temor de passar vergonha realmente seria materializado, o temor de ser o peso morto da caminhada, aquele sedentário idiota que sempre fica para trás, que envergonha o grupo, que nunca deveria ter entrado em algo que definitivamente não era adequado ao seu perfil preguiçoso e lerdo.

Enfim, eu estava no meu primeiro dia de caminhada rumo ao topo do Monte Roraima, a mágica montanha no mundo perdido, a estranha formação rochosa que abrigava a fronteira entre o Brasil, a Venezuela e a República Cooperativista da Guiana, e estava prestes a desistir, menos de uma hora depois de colocar o pé na trilha. Continuar significaria me expor a riscos que agora eu sabia serem altíssimos, tanto para o meu corpo, quanto para a minha saúde e a minha reputação. Aquela subida íngreme também me mostrava que o medo de não conseguir terminar a trilha não era algo fruto apenas de minha imaginação doentia, mas uma possibilidade real e bastante provável. 

Como eu conseguiria continuar caminhando aquele e mais cinco dias, sendo que meu coração já tinha ultrapassado meus limites de batimentos cardíacos e meu pulmão não conseguia puxar todo o ar necessário para mandar oxigênio para os músculos? Minhas pernas fraquejavam, a mochila me torturava as costas, meu calcanhar direito já sentia o atrito com a bota e os músculos das pernas tremiam mais do que um gato acuado por uma matilha de lobos. Eu me sentia tonto, o calor quase me sequestrando os sentidos e a boca cada vez mais seca. 

Para piorar tudo isso, eu tinha a consciência de que estava fazendo uma subida de pouco mais de 100 metros, para chegar a uma altitude que não era nem a metade daquela encontrada no topo da montanha. Pela frente, se eu decidisse continuar, ainda teria dezenas de subidas e faria uma ascensão vertical vinte e cinco vezes maior do que aquela ali, pelo menos. Teria eu estrutura física e mental para repetir tal desgaste assim dezenas de outras vezes? Não sabia eu que encontraria subidas muito mais íngremes pela frente, principalmente no terceiro dia?

Em algum momento de toda grande jornada, às vezes até antes mesmo de começar, você vai pensar em desistir. Subindo minha primeira grande ladeira na trilha rumo ao Monte Roraima, eu vivia exatamente um momento desses e não poderia demorar a decidir se voltaria ao conforto da minha casa ou se continuaria arriscando meu corpo e minha vida em uma aventura com ares de tragédia. Uma decisão precisava ser tomada e, em menos de dez minutos, não haveria mais dúvida alguma no meu pensamento.

Alexandre Henry
alexandre.henry.alves@gmail.com

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